Hannah Gadsby conta sua história misturando comédia com nossa dura realidade
Ju Arthuso · Follow
5 min read · Jun 21, 2018
Hannah Gadsby é famosa pela comédia onde aponta suas próprias falhas e acaba fazendo piada de si mesma, um estilo chamado de self-deprecating. Como ela mesma diz, fazer piada com os próprios defeitos pode ser um sinal de humildade e excelente capacidade de auto-análise. Uma amostra do estilo dela pode ser vista na série australiana Please Like Me, que também está na Netflix.
Nessa série ela mostra uma caricatura do que seria seu humor, pois sua personagem passa por depressão, o que torna as coisas um pouco mais sérias.
Diferente do que é retratado na série, o estilo dela é mais leve. Como ela mesma conta, sua arte sempre foi uma maneira de lidar com os traumas da vida, transformando tudo em comédia de alta qualidade.
No Especial da Netflix chamado Nanette, a comediante australiana reformula o stand-up padrão, combinando as punchlines das piadas com revelações pessoais sobre gênero, sexualidade e uma infância e adolescência turbulentas.
Como comediante ela sempre teve traços que chamam atenção, como o fato de que ela é lésbica e faz muita piada sobre seu dia-a-dia num mundo onde ser lésbica não é “a norma”. Inclusive, o nome do Especial é o nome de uma antiga crush da moça.
Além disso, tem o fato de que nasceu numa cidade pequena na ilha da Tasmânia, onde ser homossexual era considerado crime até 1997.
Só essa pequena contradição já bastaria como argumento para que você assista Nanette, afinal o ponto de vista dela é único. Mas é claro que tem mais.
O show, escrito com primasia para ser adaptado em um livro e um especial Netflix, vê Gadsby entrar em um palco inundado de luz azul. Ela começa de modo bem familiar, estabelecendo sua personalidade através de uma série de piadas sobre a bandeira gay e os feedbacks do público. Ela se orgulha de sua comunidade, mas diz que prefere não definir seu gênero e se identifica principalmente como “cansada”. E quem não está?
Outra parte do texto apresenta uma história que todo mundo conhece muito bem: a reação de sua mãe quando ela “saiu do armário”. Mas essas piadas vão se transformando em algo mais profundo.
A questão central de Nanette é a história de fundo— especificamente, como é empregada e manipulada dentro da roupagem de comédia. À medida que o show continua, Gadsby abandona o pacote pronto de piadas com setup e punchline e confronta sua própria vida com uma precisão rígida, fazendo revelações muito íntimas, mas que muita gente consegue se identificar profundamente.
Para Gadsby, o contexto narrativo é o que está faltando não apenas na comédia, mas na arte e na política em geral. Durante a segunda metade do espetáculo, ela volta sua atenção para abusadores que foram vangloriados pelo show business como Roman Polanski, Pablo Picasso, Louis C.K. e Bill Cosby, desmantelando a preocupação do público com homens tóxicos e suas “preciosas” criações. Essa preocupação em “respeitar a arte mesmo que seja feita por um abusador”, como observa Gadsby ao discutir a misoginia de Picasso, serve para mitificar artistas masculinos e, ao mesmo tempo, negar às mulheres — especialmente mulheres negras, mulheres queer, mulheres trans — o respeito, atenção e investimento literal e figurativo que muitas merecem no meio artístico em geral.
O contexto aqui não é apenas que esses homens abusaram de mulheres enquanto faziam seu trabalho, mas que podiam continuar a fazê-lo porque, para a sociedade, as mulheres que abusavam não importavam, e por consequência nem o trabalho que essas mulheres faziam e fazem.
Se você é LGBTQ, vai se identificar com a dureza da realidade das histórias da Hannah. Não vou contar aqui porque é spoiler, mas acredite, ela passa toda emoção entre as piadas. Quase chorei, três vezes, assistindo esse Especial. Em determinados momentos ela conta sobre as violências que passou e faz uma relação dessa violência de 20 anos atrás com a realidade política atual. Com uma fala rápida, assertiva e acessível. Ela é habilidosa com o texto, pois consegue passar uma mensagem extremamente profunda e pesada, com palavras leves. É bom também tirar um momento para parabenizar os tradutores que fizeram a legenda, pois não é fácil traduzir esse vocabulário tão específico.
Se você não é LGBTQ, vai sentir por eles e pode construir e trabalhar sua empatia, pois ela é uma excelente storyteller, e vai te fazer sentir na pele o que é ser considerado diferente por toda uma sociedade, inclusive pelas pessoas que te criaram desde pequeno (a).
Para quem já assistiu o especial Netflix do James Acaster, o estilo é parecido mas não é igual. Tanto ele como a Hannah fazem comédia capaz de contar uma história com começo, meio e fim. E os dois usam metalinguagem. No caso de Hannah, ela conta melhor como se faz boa comédia, delineando sobre os contornos da desigualdade de gênero enquanto honra a tensão — peça fundamental da comédia que depois é quebrada com piada. Tensão esta que é sentida mais profundamente por alguns membros da plateia do que por outros.
Gadsby consegue fazer tudo isso abraçando sua humildade e sua raiva. Ela sabe que sua perspectiva é pessoal, mas ela também assume seu lugar em uma luta coletiva, arriscando uma personalidade cultivada e monetizada durante mais de 10 anos de carreira para dizer algo desconfortável, mas profundamente real.
Diante dessa raiva e especificidade de conteúdo, Gadsby comentou em entrevistas que “nunca pensou que o show iria estourar”. Ainda assim, começando por sua terra natal, ela já se apresentou na Austrália e Reino Unido, onde já tinha mais seguidores. Depois foi chamada para apresentações em Nova York, onde o espetáculo está em cartaz no SoHo Playhouse, e agora assinou com a Netflix, lançando uma versão gravada de seu especial no dia 11 de junho. Mesmo assim, ela declara que este será seu último show de comédia. :(
Ao ousar percorrer um caminho que vai além da comédia tradicional, Nanette traz uma comediante tão incrivelmente engraçada quanto profundamente furiosa — fazendo a gente esperar que seja um recomeço, e não o último capítulo de uma brilhante carreira.